quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Valentim

(ao som de Sadness, Enigma - música no final do post)

Rápida e compassadamente as árvores pareciam movimentar-se. As casas, os postes, a paisagem. Carolina sentia-se assim sempre que viajava de comboio. Adorava sentar-se junto à janela e sentir-se estática com todo um mundo em movimento diante dos seus grandes olhos castanhos.
Absorta nos seus pensamentos mal sentiu o tempo passar e em menos de nada apecebeu-se da paisagem familiar do destino, preparou-se para desembarcar, saiu e respirou fundo o frio e húmido ar da cidade. Nessa fria manhã de Fevereiro optou por ir a pé para casa em vez de apanhar o costumeiro táxi. Precisava pensar, sentir o ar gelado nas faces, respirá-lo, esfriar o coração.
Cedo se arrependeu da decisão. As montras da avenida pintavam-se de vermelho garrido e enfeitavam-se de corações de todos os tamanhos e feitios. Por toda a parte casalinhos apaixonados arrulhavam, mão na mão, olhos nos olhos, alma na alma. Por toda a parte respirava-se amor e era de tudo menos disso que queria lembrar-se. De amor.
Em vez de virar em direcção a casa, resolveu apanhar o autocarro para a praia. Queria estar só, queria enlutar-se e chorar, pegar na mágoa que a sufocava e atirá-la como uma pedra ao mar.
Chegou, e mais uma vez respirou uma longa golfada de ar fresco enquanto perdia o olhar no mar cinzento a perder de vista.
Sentiu-se só e Carolina não estava habituada a sentir-se assim.
Sentiu-se triste por ter perdido o amor e a vontade de amar.
E enquanto assim se sentia, bateu com os olhos nele. Ela já o tinha visto na cidade. Cabelo negro, lábios carnudos, olhos pequenos mas profundamente azuis. Fumava um LM Light a poucos metros dela, bem junto à rebentação. Era forte, másculo, mas não era atraente. Por outro lado era extremamente apetecível aos olhos de Carolina, por estar envolto numa aura de mistério pouco habitual... Ela já o tinha visto muitas vezes no local onde trabalhava mas nunca tinha conseguido saber mais do que a empresa em que exercia funções. Dirigiam-se sempre um cordato "Bom Dia" e um olhar com sabor a mais...
E perdida nestas considarações ele viu-a e aproximou-se.
E não trocaram palavras, mas conversaram longamente com os olhos.
E quando tudo havia sido falado, caminharam pela areia e respiraram juntos a gélida maresia.
E quando nada mais havia a respirar e o cinzento céu desabou em chuva, dirigiram-se juntos para o carro dele, que os levaria a sua casa.
E enquanto tudo parecia absurdamente surreal, Carolina perguntou-se o que estaria a fazer na casa de um homem que não conhecia e de quem não sabia sequer o nome. Mas antes que pudesse abrir a boca ou sequer despir o casaco, já todo ele estava nela, já os seus lábios se fundiam nos dela, já as suas mãos trilhavam os caminhos do seu corpo. Carolina, rendida, deixou-se enredar na teia de desejo que ambos construíram durante meses de olhares prometedores e sentiu o poder da paixão como nunca antes tinha sentido o amor, aquele amor que ela não tinha e não tinha vontade de sentir.
Envolveram-se ali mesmo, no moderno hall de entrada por cima das roupas espalhadas... Carolina viu a língua daquele sensual desconhecido percorrer cada centímetro da sua carne e quase morreu quando com ela saboreou o sumo do seu desejo... E quase morreu novamente quando ele entrou nela, vigoroso mas suave, com os olhos cravados nos dela, ardentes e febris, num desejo louco, incomensurável... E morreu nos seus braços quando tudo ficou branco e sentiu o calor do seu desejo no mais profundo de si e assim quis ficar, como preservada eternamente naquele momento...
Carolina deixou-se ficar estendida na felpuda carpete do hall, ouvindo a chuva cair lá fora e o homem cujo nome ainda não sabia puxou de dois cigarros, um para cada um.
E quando a conversa do olhar já não chegava para satisfazer a sua curiosidade, Carolina perguntou:
- Afinal, como é que te chamas?
Ele não respondeu. Acabou o cigarro e esperou que ela acabasse o dela. Levantou-se e disse "Vem..." e ela estremeceu com a rouquidão sensual da sua voz. Levou-a ao quarto. Em cima da cama uma rosa vermelha. Abraçou-a e, olhando-a mais profundamente que nunca, disse:

- Por ser para ti, posso ser apenas... Valentim.

12 comentários:

... disse...

Por vezes, as coisas mais importantes são ditas com o olhar, com o toque, com o desejo, e não com palavras. É o caso deles ;)
Está muito cativante, e bem escrito, adorei mesmo. Romântico, apaixonado, intenso.

Sou apaixonada por histórias assim, em que as pessoas não sabendo praticamente nada uma da outra, se sentem atraídas como um íman, e quando dão por si já estão a consumar desenfreadamente tudo aquilo que sentem.

Fico fascinada com aquilo que duas pessoas podem transmitir uma à outra só através de um olhar cúmplice!

Parabéns pela inspiração, e obrigada pelo convite para ler o resultado ;)

redjan disse...

Valentim ? Valentim .. Loureiro ? Cuidado miuda .... a peça não é de confiar !Não te prometeu uma .. no frigorifico ?

PS: Viajante ... gr8 text ... gr8 finale !!!!

GataHari disse...

Viajante pelos sentidos e cheia de deles!!! Muito bom texto!! Intenso e apaixonante!! Adorei!! Vou continuar a viajar por cá!!

AJO disse...

Por uns instantes quase deixei de respirar... se é que não deixei mesmo... adorei.

Ai e Tal... disse...

Ai o toque... Deixa-nos de rastos... Aquele toque especial, da pessoa especial, naquele sitio especial... :PPP

***MUAH***

Vanquish disse...

Quando menos se espera... o amor está lá!

Beijinho

ContorNUS disse...

viagem pelos sentidos...literalmente ;)

A sonoridade casa perfeita com as palavras

Anônimo disse...

uau...
eu ja tava empolgada com a história sem dúvida foi a cereja no topo do bolo..
um optimo texto, uma optima história e uma optima escrita :)
venho aqui viajar mais vezes :)
*

Anônimo disse...

adorei este texto!

AJO disse...

Vale smepre a pena reler belas palavras.
Boa Semana

Red Light Special disse...

Lindo... lindo!
Era tão único, mágico, se fosse verdade!
beijos para ti aind a sentir as tuas palavras...

black puss in white boots disse...

Linda história. Gostei deste valentim, mas do que o que aquele que aparece todos os anos no dia 14 de Fevereiro e invade de artificialidade o que é para ser natural e autêntico.
Assim sim, um valentim assim merece ser celebrado :)
Blackiss sweet!